Por MINO CARTA - Via Carta Capital -
O Brasil tinha tudo para ser o país do futuro, mas ao longo do tempo reforçou sua ligação com o passado.
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| Praça da Sé em São Paulo, anos 40, a catedral em gótico anacrônico ainda em construção. |
Ao chegar a São Paulo em agosto de 1946, meu pai tinha certeza de aportar no país do
futuro. Com ele vinham a mulher e dois filhos, ou seja, meu irmão Luis e
eu, ambos rapidamente remetidos ao Colégio Dante Alighieri. São Paulo
era uma cidade composta e pacata, não abrigava favelas ou exibia pobreza
nas ruas, os homens, todos sem exceção, assim me pareceu, usavam chapéu
no inverno e meias brancas quase sempre.
A cidade tinha 1 milhão e meio de
habitantes e 50 mil carros, e as chapas dos senhores apresentavam
números baixos, às vezes um apenas, até o 9. O conde Chiquinho Matarazzo
tinha direito ao número 1 para o seu carrão preto, não recordo se
Cadillac ou Lincoln Continental. Quando chegamos, nos postes da Avenida
São João, a mais importante do Centro, estavam pendurados cartazes que
apresentavam uma perturbadora Rita Hayworth no papel de Gilda, em
tamanho gigante, a convidar a população ao Cine Ipiranga para assistir
ao filme homônimo.
Morávamos no Jardim Paulistano e
meu irmão e eu andávamos 10 minutos até o ponto final do bonde. Jogava
futebol na rua, quando toda pedra ou lata merecia meu chute, e nas
manhãs de domingo no campo do Corintinha da Maria Carolina, de terra e
desnível de dois metros entre um gol e outro. Cedo vinham os carrinhos
carregados de verdura para bater à porta das casas, e um coxo passava
com seu aviso em tom de ladainha: cinco cá-beças de alho, dois
cruzeiros. Telefone era luxo, a pagamento usava-se o da venda na esquina
mais próxima. Os graúdos moravam nos casarões da Avenida Paulista, eram
quatrocentões, ou seja, originários de Portugal que pretendiam ter
chegado pouco após Cabral, ou italianos e árabes enriquecidos, às vezes
muito, estes últimos chamados de turcos por terem desembarcado com
passaporte do Império Otomano.
Diluídas nos tempo as histórias
aventurosas do mítico ladrão Amleto Gino Meneghetti, capaz de escalar as
paredes das mansões e de dizer: “A diferença entre um banqueiro e eu é
que aquele tem paciência”. Os carcamanos e os descendentes de espanhóis
ficavam nos bairros operários, Brás, Bexiga, Mooca, Pari, onde havia
décadas representavam o braço válido da transformação de São Paulo no
maior centro industrial do Hemisfério Sul.
O Brasil mudaria a partir desta região da cidade, em
sentidos diversos. De noite, as famílias levavam as cadeiras para as
calçadas, tomava-se vinho e jogava-se aos gritos a morra, um palitinho em que os dedos da mão substituem os palitos. Illo tempore,
e me refiro ao período que vai de 1946 até o golpe de 64, estavam
vivos, só para lembrar alguns, Gilberto Freyre, Raymundo Faoro, Sérgio
Buarque de Holanda, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Candido Portinari,
Nelson Rodrigues, e havia jornalistas como Claudio Abramo.
Que sobrou daquela cidade e daquele Brasil? Sabemos dos
efeitos trágicos do golpe civil-militar. Mas já naquela risonha quadra
paulistana as oligarquias esticavam seus tentáculos. Vínhamos da época
das monoculturas, dos coronéis, dos senhores de engenho, que plantaram
hábitos antes que raízes. Vínhamos das greves de São Paulo nas duas
primeiras décadas do século passado, resolvidas por Altino Arantes com a
expulsão de 400 anarquistas. Mesmo assim, Getúlio Vargas cuidara de
criar Volta Redonda e a Petrobras, a CLT e o salário mínimo.
O mal irreparável causado
pelo golpe é escancarado aos nossos olhos, interrompeu um processo
habilitado a levar o Brasil à contemporaneidade. Vivemos até hoje as
consequências do golpe, e das tradições e dos humores gerados pela
colonização predatória e pela escravidão. Baseados na inesgotável
vocação golpista, na corrupção endêmica, e até na vocação da rasteira e
do passa-moleque, própria do agir necessariamente subdoloso do escravo.
Quando cheguei ao Brasil, a nossa cultura olhava para
Paris, os filhos dos senhores haviam estudado na França, embora os pais
viajassem para Marselha em companhia de vacas leiteiras, a garantir a
qualidade do café da manhã. Logo nos entregamos ao exemplo dos Estados
Unidos, e com esta escolha erguemos uma caricatura. Foi o primeiro passo
da desgraça, estética, se quiserem, a qual não é de modo algum
secundária, a alimentar e fecundar provincianismo, ignorância,
insensibilidade, mau gosto, arrogância, bem como inúmeros recalques. O
momento que atravessávamos não é inútil, ao menos é revelador.
Meu pai, está claro, enganava-se.
