30.11.18

O CAMINHO DA COVA?

LUIZ ANTONIO SIMAS -


Povo das escolas de samba e do carnaval (e interessados na história das cidades) faço algumas ponderações diante da crise em que o carnaval está mergulhado. A polêmica sobre o repasse de verbas da prefeitura coloca de novo os desfiles em risco.

Tem muito caroço nesse angu.

Há quem diga - li por aqui - que o problema é que a prefeitura de Marcelo Crivella não enxerga o carnaval como uma manifestação cultural.

Sinto dizer que esse buraco é mais fundo. O prefeito enxerga o carnaval como cultura; não tenho dúvidas disso. E por isso o odeia.

Não adianta, portanto, discutir com o bispo evocando a importância cultural do carnaval. A tropa neopentecostal sabe o que significa o carnaval para a cidade e é por isso que pretende aniquilá-lo.

Por incrível que pareça, são os patrões e dirigentes de grande parte das agremiações (há exceções que destaco sempre) que não sabem que carnaval é cultura.

Existe no Brasil uma disputa escancarada pelo mercado da fé, diretamente vinculada ao aumento do número de fieis de cada credo e com fortes repercussões na política institucional. Neste sentido, é recorrente que algumas instituições religiosas adotem como uma estratégia na disputa de mercado a destruição de outros laços de pertencimento, a partir de uma visão binária entre o bem e o mal.

A Igreja Universal do Reino de Deus arrebanhou parte significativa de seus fiéis entre umbandistas e adeptos dos cultos aos orixás, inquices e voduns. No embate ideológico para conquistar fiéis, surgiu o “Orixás, Caboclos e Guias”, livro de Edir Macedo fundamentado na doutrina de que as religiosidades brasileiras afro-ameríndias, e os saberes a elas cruzados ou vinculados (escolas de samba entram no bolo, ainda que algumas se esqueçam disso), são manifestações malignas que devem ser expurgadas ou domesticadas.

Na divulgação do livro, edição de 1990, está escrito o seguinte:

"O bispo Macedo tem desencadeado uma verdadeira guerra santa contra toda obra do diabo. Neste livro, denuncia as manobras satânicas através do kardecismo, da umbanda, do candomblé e outras seitas similares; coloca a descoberto as verdadeiras intenções dos demônios que se fazem passar por orixás, exus, erês, e ensina a fórmula para que a pessoa se liberte do seu domínio."

Há uma instância de sociabilidade entre os membros da IURD que se estabelece, portanto, pela desqualificação de outras formas de sociabilidade e saberes. Ela é, inclusive, racista, já que opera no campo simbólico da depreciação das práticas e dos saberes afro-ameríndios.

É aí que entra o carnaval.

A prefeitura Marcelo Crivella opera em algumas frentes em relação à festa:

- Investe na dicotomia: bem x mal; saúde x carnaval; creche x escola de samba; responsabilidade pública x irresponsabilidade do folião.

- Flerta, ao mesmo tempo, com interesses de grupos privados que querem controlar o negócio do carnaval e que estão francamente disputando isso; prometendo afastar o poder público do negócio, que passará a ser gerido pelos interesses exclusivos do mercado.

- Aposta na redução drástica do número de escolas de samba existentes. O ideal, nesta concepção, é que sobrem poucas escolas: aquelas que conseguirem se vender como agremiações capazes de atrair os capitais da indústria do entretenimento, diluídas em padrões uniformes, inclusive de performance, perdendo muitas vezes a vitalidade transformadora e as especificidades dos ricos complexos culturais que se desenvolveram em torno delas.

- Busca consolidar o apoio de grupos reacionários sensíveis ao discurso moral da peleja contra a depravação, tentando, inclusive, ampliar o arco de apoio entre os evangélicos que não simpatizam com a IURD.

- Assume a batalha no campo das subjetividades contra o complexo cultural brasileiro de origem africana e ameríndia, buscando realizar a guerra santa contra os demônios preconizada por Edir Macedo em seu livro seminal (acima citado).

- Aposta no desgaste que as escolas de samba experimentam, em boa medida por culpa delas mesmas. As agremiações se isolaram em bolhas, casulos e camarotes vips, acreditaram no canto da sereia de que seriam aceitas nos salões e perderam parte considerável do campo afetuoso de proteção social que já tiveram em outras épocas entre os cariocas.

Teria outras ponderações a fazer, mas aos poucos vamos soltando as ideias. Proponho de imediato duas reflexões ao povo do carnaval:

- Como podemos nos situar diante do jogo dicotômico proposto? Tentaremos justificar a existência do carnaval pelos dados objetivos da economia criativa e do retorno financeiro que a festa traz para a cidade (corroborando com o discurso de que o carnaval se justifica porque é um negócio lucrativo)? Só isso não vai funcionar. É urgente disputar as subjetividades e afetos que a festa propicia no campo poderoso da cultura.

- Continuaremos olhando para nosso próprio umbigo e nos contentaremos com algum acordo de gabinete, ou pretendemos assumir algum protagonismo na luta mais ampla que precisa ser travada contra as forças reacionárias - em diversos níveis - que pretendem destroçar um complexo de saberes, aniquilando o Brasil como um campo de possibilidade de elaboração de existências e corpos soberanamente descolonizados?

Confesso que estranhei a adesão automática de algumas escolas de samba ao prefeito durante a campanha eleitoral. Imaginei, todavia, que a adesão – com discursos, cerimônias, Pega no ganzê e o escambau – tinha sido pactada, negociada, feita de recuos de ambos os lados. Escolas de samba só sobreviveram porque negociam o tempo todo, são maleáveis, malandras, adequadas e (na adequação) resistentes.

O tema tem centralidade: simplesmente não se pode pensar cultura, economia e território no Rio de Janeiro sem as escolas de samba. Elas são a mais impressionante invenção carioca inscrita no tempo e no espaço da cidade; expressões vivas dos dramas, dilemas e maneiras de inventar a vida como possibilidade de alegria e beleza desconcertante da nossa gente.

Tenho algumas convicções que já publiquei aqui ou ali e reafirmo:

– As escolas de samba deveriam prioritariamente se pensar (só assim serão encaradas) como instituições do campo da cultura, e não do turismo de entretenimento.

– Desfile de escola de samba deveria dialogar com o poder público prioritariamente por intermédio dos órgãos de cultura, e não dos de turismo.

– Desfile de escola de samba deveria ser tratado como um evento da cultura, e não como um espetáculo midiático da cultura do evento.

– Escolas de samba deveriam negociar soberanamente o contrato de televisão. A TV Globo transmite o carnaval com a perspectiva do entretenimento leve e vazio de um show de celebridades, tentando contemplar o público que não dá a menor pelota para o desfile, mas quer assistir ao ex-BBB de plantão num carro alegórico. As transmissões não formam público para o carnaval e nem contemplam quem gosta de carnaval. O repórter, o comentarista, o apresentador, têm que fazer o estilo “engraçadinho maneiro” para agradar o público-alvo. O desfile é micaretado, infantilizado, midiatizado, no pior sentido.

– As escolas de samba são as maiores responsáveis pela perda da credibilidade do carnaval. Elas parecem não saber (de novo ressalto que há exceções) quem são, o que representam e o papel de centralidade que ocupam na história da nossa cultura. E é só das entranhas das próprias agremiações e de suas gentes - em diálogo com todos os envolvidos - que podem sair soluções possíveis e duradouras para essa crise.

A tendência é, se a reação não for coletiva e urgente, que as escolas de samba se enfraqueçam e agonizem até acabar.

Como, de certo modo, a cidade e o país. (Facebook)